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Para além das filas do osso: uma conversa sobre insegurança alimentar com entidades

Desde junho de 2020, devido à crescente demanda por doação de alimentos em decorrência da pandemia de Covid-19 e suas consequências socioeconômicas, ação Comunidade Viva Sem Fome vem distribuindo mensalmente cestas básicas para famílias em situação de insegurança alimentar na Grande BH.


Um ano e quatro meses depois do começo da ação, somam-se mais de 1000 toneladas de cestas básicas distribuídas para mais de 50 mil famílias e, com a redução da taxa de mortalidade da doença que provocou desemprego em massa no país, muitos nos perguntam: mas e a fome? Também está diminuindo?


Para começar a responder, recorremos a representantes de quatro coletivos que fazem localmente a distribuição das cestas do projeto com o intuito de ouvir como hoje eles percebem a fome nas comunidades onde moram e atuam.


Maria das Graças Silva Ferreira, 54, liderança comunitária no bairro Confisco - Belo Horizonte, onde mora há mais de 20 anos, criou o projeto Acorda Confisco Criativo logo no começo da pandemia, quando percebeu que o primeiro impacto seria no comércio local. Uma solução, portanto, foi incentivar os moradores a comprarem uns dos outros, para fazer circular a economia local e ajudar os pequenos empreendedores.


A fome, entretanto, não demorou para bater na porta e é na casa da Graça que muitos moradores do bairro pedem ajuda para encontrar um emprego, se cadastrar no auxílio emergencial, conseguir doações de alimento, leite e fralda. Dessa necessidade e da criatividade dos moradores, nasceu o projeto Bancada Solidária, que atende moradores do Confisco e dos bairros do entorno. Enquanto a bancada está posta, as pessoas podem deixar ou pegar os itens que estão dispostos conforme a necessidade, como conta a liderança:


“Transformamos o arroz de 5kg em 5 pacotinhos, café, leite, biscoito, verduras. Pensando nesse público que perdeu tudo ou quase tudo. Ao redor dessa mesa, também tentamos levar assistência jurídica, psicólogos e roupas. As parcerias são uma potência! Tem até parceiros que ajudam divulgando vagas de emprego.” Maria da Graça (Acorda Confisco Criativo)


Bancada Solidária - Confisco - BH / Acorda Confisco Criativo


O trabalho coletivo faz resistência à pobreza extrema não só na partilha da Bancada Solidária, mas também com a conscientização da população sobre seus direitos, que é parte fundamental do trabalho.

Eu aprendo cada dia mais que juntos podemos conquistar tudo aquilo que nós almejamos. Não tem como a gente lutar sozinha. Se eu pudesse, abraçaria o mundo todo, mas como sou pequena, não posso.” Maria da Graça (Acorda Confisco Criativo)

Graça, que, vale dizer, de pequena não tem nada, nota que apesar dos esforços empregados para mitigar os impactos da pobreza na comunidade, a situação tem piorado. Um fator importante é que, com o desemprego, as pessoas não têm dinheiro para o aluguel e, como a maioria não possuir casa própria, acabam sendo despejadas, ou usando o pouco dinheiro que tem para pagar o locador, e não sobra para mais nada, inclusive para comida.

Há 15km do Confisco, conversamos com Isabelle Chagas, 26, sobre sua atuação junto a outras mulheres da Vila Nova, comunidade no bairro Jaqueline, Zona Norte de Belo Horizonte, onde ela nasceu, se criou e precisou se recriar durante a pandemia.

“Os impactos da fome desde o início da pandemia fazem parte de uma conversa cotidiana. Você começa a saber que um vizinho não tem, aí de repente outra te procura pra pedir ajuda para ela, para outra e isso vai se tornando uma conversa dentro da comunidade, a partir do momento que isso impacta socialmente uma grande parte das famílias. Então isso é cotidiano pra gente, saber que tá faltando pra um, que tá faltando pra outro, você tenta aqui, tenta ali… Foi por causa disso que nasceu o coletivo Mulheres da Vila Nova, num carácter muito emergencial para tentar pensar em soluções nesse contexto local.” (Isabelle Chagas - Mulheres da Vila Nova)

Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, o Brasil tem 19,1 milhões de cidadãos em situação de insegurança alimentar leve, moderada ou grave. O dado nos alerta para algo grave: um em cada nove brasileiros sente fome todo dia.

Ao contrário do que se pode pensar, a fome não é um elemento isolado, mas sim um sintoma de desigualdades sociais estruturais. O desemprego e a insuficiência de programas sociais para lidar com o impacto da pandemia apenas escancararam, e aumentaram, uma realidade que as periferias já conhecem.

“Chegamos no mais fundo do poço no sentido da desigualdade social. A fome é literal, mas ela também é uma representação da pobreza extrema. O Brasil já tinha saído do mapa da fome das Nações Unidas e ele retorna. Hoje a gente vive níveis de insegurança alimentar similares ou piores que em 2004, quando começaram programas como o Fome Zero, que mudaram o percurso da população brasileira em relação à segurança alimentar.” (Isabelle Chagas - Mulheres da Vila Nova)

Julio Fessô, 46, fundador do Movimento Eu Amo Minha Quebrada, no Morro do Papagaio, Zona Centro-Sul da capital mineira, aponta que a pandemia serviu para escancarar as desigualdades. Perguntado sobre as fotos que circularam nas últimas semanas nas redes sociais, de pessoas buscando restos de osso nos caminhões de lixo, ele relata que “não é de hoje que os lixões e os caminhões de lixo são visitados, e nem que os açougues vendem ossos ou restos, a famosa muxiba, ou mistura.”


Entrega de cestas no Morro do Papagaio (Movimento Eu Amo Minha Quebrada)


O impacto do aumento da pobreza na alimentação das famílias nas periferias é notado pelas lideranças em vários aspectos, que vão desde a impossibilidade de comprar produtos de higiene básicos, como sabonete e escova de dente, até situações que afetam diretamente a saúde física e mental das pessoas.

Para compreender esse impacto no território onde atua, Isabelle nos conta que, no começo do trabalho do coletivo, foi necessário fazer um mapeamento com as famílias da Vila Nova para diagnosticar como a pandemia impactava a alimentação dos cerca de 900 moradores da comunidade.

“Nos surpreendemos muito com o número de famílias (em situação de insegurança alimentar), que era muito maior do que a gente imaginava. E a fome impacta de formas que às vezes a gente não tem dimensão. Então, por exemplo, a gente foi conversar com mulheres grávidas e lactantes, mulheres que tão vendo o leite secar, porque elas deixam de comer, ou não comem mais frutas, para deixar para os filhos, aí o leite seca. Então isso se torna um problema para a mulher e para o bebê dela.”

Isabelle Chagas (Coletivo Mulheres da Vila Nova)

Uma solução encontrada pelas mulheres da Vila foi a criação do projeto Ora-Pro-Nobis: cultivando alimentação saudável na periferia, que teve como mote pensar em formas de resistir ao cenário de extrema fome através de soluções cotidianas e viáveis para o dia a dia da periferia. O projeto implementou canteiros compartilhados de hortas e promoveu oficinas e ações educativas sobre segurança alimentar, direito à alimentação humana e acessível.


Oficina de cultivo do projeto Ora-Pro-Nobis (Créditos: Fernanda)


Mesmo para aqueles grupos que atuam nas periferias da Grande BH há anos, como é o caso do Eu Amo Minha Quebrada, a pandemia mostrou uma face da pobreza que há muitos anos não aparecia e, mesmo com os esforços empenhados localmente, a demanda por cestas básicas ainda cresce.

Para ser bem sincero, não sei se as coisas estão melhorando quando o assunto é fome. Ainda é muito cedo pra dizer que melhorou alguma coisa neste sentido. Ainda tem muita gente sem emprego, sem renda e, principalmente, sem ter o que comer todo dia. (Julio Fessô - Movimento Eu Amo Minha Quebrada)

O prognóstico de Júlio é compartilhado também por Simone Silva, 42, uma das fundadoras da Mulheres da Quebrada, que nasceu no Aglomerado da Serra, a maior favela de Minas Gerais. Por lá, a privação alimentar já era uma realidade, mas, com a pandemia, o aumento do preço de alimentos e do gás, somados ao desemprego, impediu que as famílias tivessem uma alimentação minimamente saudável.


Distribuição de cestas - Mulheres da Quebrada


“Com a diminuição do número de mortes por causa do covid, muitas pessoas têm certeza que a pandemia está no fim, ou que estão imunes, mas o emprego ainda não chegou, os preços ainda estão altos, o gás está extremamente alto. Um pacote de arroz que antes era R$12,00, hoje tá quase R$25,00. Infelizmente não há melhora, ao contrário, há um retrocesso muito grande. Vejo que as famílias estão com dificuldade cada vez maior, as mulheres nos procuram cada vez mais.(...) Antes a gente recebia 200, 300 mensagens por dia. Hoje abrimos o celular e tem mais de 500 mensagens de pessoas pedindo para entrar no nosso banco de cadastro de reserva (de doação de cestas básicas), para caso aconteça da gente poder doar. As pessoas estão passando por grandes necessidades.” Simone Silva - (Mulheres da Quebrada).

Para grande parte das famílias que vivem nas periferias atendidas pelos grupos parceiros do Comunidade Viva Sem Fome, as cestas básicas são a única fonte de alimento digno. Onde as cestas ainda não chegam, as famílias recorrem a produtos vencidos ou estragados a um custo menor, pertences com menor valor de mercado em açougues, como é o caso dos pés e pertences de frango. A carne, em muitos pratos, foi substituída por alimentos ultraprocessados, como a salsicha.

Tem se tornado cada vez mais comum, dentro das favelas e ocupações de Belo Horizonte e Região Metropolitana, encontrar pessoas buscando restos de alimentos no lixo, cenas que sempre chocam quem está na linha de frente do combate à fome.

“Isso não choca porque a sociedade não vê, mas nós que estamos lidando diariamente, cotidianamente, com essas famílias, a gente se choca todos os dias. A gente se preocupa sobre como uma sociedade que já teve tantos avanços ainda passa por esses processos.” (Simone Silva - Mulheres da Quebrada)

Pessoas como Graça, Isabelle, Julio, Simone e outras centenas de líderes comunitários só conseguem amparar e diminuir localmente o impacto da fome graças à rede de parceiros e doadores construída em torno do Comunidade Viva Sem Fome. Cada cesta doada significa segurança de uma mãe ir dormir sabendo que no dia seguinte, tem comida pro almoço, que mesmo voltando da entrega de currículo sem esperanças, um jovem vai conseguir se alimentar, que crianças terão os nutrientes necessários para se desenvolverem, brincarem e estudarem.

Para saber mais sobre os trabalhos desenvolvidos pelos projetos que citamos aqui e seu poder transformador, acompanhe-os nas redes:

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